“A Música da Minha Vida” é uma mistura de clichês que funciona melhor do que muito filme original

Um jovem garoto desajustado, com um grande talento artístico oculto, dificuldade para acreditar em si mesmo e nenhum apoio dos pais, os quais projetam, nele, suas ideologias e sonhos não realizados; quando começa a se cercar de estímulos, percebe sua própria capacidade e começa a investir em si mesmo em uma jornada de autodescobrimento. Esta pode ser a premissa de um grande número de obras audiovisuais, desde “Jump in” até “Billy Elliot”, mas também é a premissa de A Música da Minha Vida, novo filme extremamente da Warner Bros. Pictures que busca fazer uma ode às músicas de Bruce Springsteen.

A trama começa em 1987, na Inglaterra. Entre turbulências políticas, raciais e econômicas, o filme conta a história de Javed, um jovem com ascendência paquistanesa que vive em uma cidade extremamente intolerante. O protagonista possui uma grande paixão pela escrita, mas esconde seus talentos devido ao conservadorismo de seu pai, que sonha fazer do filho um homem tradicionalmente bem sucedido. Sua vida muda, entretanto, quando conhece as músicas de Bruce Springsteen, as quais conseguem traduzir seus sentimentos mais profundos em meio a um estilo musical não muito popular entre sua geração.

O filme é narrado pelos próprios textos escritos por Javed, que expressa seus sentimentos em forma de poesia desde a infância. É assim que o espectador é convidado a entender o protagonista e conhecê-lo de forma ainda mais intimista e pessoal: adentrando em suas escritas e sentimentos mais profundos. Antes ouvindo apenas as mesmas músicas consideradas “chatas e monótonas”, fica claro que as obras de Bruce Springsteen afetam o olhar de Javed sobre o mundo, falam diretamente com o personagem e, ao mesmo tempo, fazem um paralelo com suas escritas – ao longo do filme, se torna cada vez mais evidente a similaridade entre as letras do cantor e os textos do protagonista.

Além disso, as letras das músicas não se limitam apenas à audição, tornando-se visíveis e compondo os quadros estéticos do filme. Junto com Javed, se movimentam em sincronia, estampando a grande mistura de sentimentos que o personagem vivencia. Neste e em outros momentos, o protagonista deixa-se levar e dança de forma leve e sem se preocupar com o mundo ao redor, sendo guiado apenas pelo ritmo da música e pela liberdade que, agora, lhe é permitido experimentar – algumas destas cenas, inclusive, acabam por parecer, para o espectador, cafonas ou até mesmo vergonhosas, mas nunca deixam de parecer intimistas e pessoais. A montagem do longa também agrega bastante à narrativa do filme, fazendo com que, em diversos momentos, o espectador se sinta assistindo a um videoclipe dos anos 80, outro fator que demonstra a relação com Javed com a música: ao escutar as obras de Bruce Springsteen, certamente se sentia como em um videoclipe.

Uma outra condição que marca a história de Javed desde o começo é o seu ressentimento pela cidade onde vive: deixa claro para o espectador, em diversos momentos ao longo do roteiro, que odeia viver naquela cidade “chata, tediosa e preconceituosa”. A fotografia do filme, sempre com cores suaves e dessaturadas, auxilia na percepção de uma cidade monótona, o que se torna um contraste em relação a outros filmes dos anos 80, que apresentam cores vibrantes e vívidas. Vale ressaltar que tal excesso de cores ainda está presente naquela realidade, mas estas se encontram, devido à proposta estética, bastante desbotadas e com uma intensidade propositalmente menor.

A relação do personagem com as pessoas a seu redor também é muito bem trabalhada ao longo do longa-metragem. Enquanto sua maior liberdade o afasta de sua família tradicional, o aproxima de novas pessoas que trazem, uma a uma, mais volume e significado à sua vida, guiando sua trajetória, encorajando seus talentos e abrindo seus olhos para o futuro que tem à frente. Um dos grandes trunfos do filme, além dos já citados, é a relação que o protagonista cria com o espectador, desenvolvendo um elo de similaridade e empatia no qual o público é convidado a se ver no lugar de Javed e entender que ou se encontra, ou já se encontrou na mesma situação que ele: se sentindo preso, sozinho e sem perspectivas em relação ao futuro.

Sua relação com o melhor amigo Matt, entretanto, acaba deixando a desejar na conclusão da história. O longa começa com a amizade de Javed e Matt, mas acaba sendo deixada, na conclusão, em segundo plano. Por mais que a decisão de roteiro faça sentindo, visualizando pelo lado de que agora a vida social de Javed não mais girava ao redor de Matt, o espectador ainda pode se ver sentindo falta de uma conclusão melhor para a narrativa dos dois amigos de infância.

Por mais clichês que possua, a obra dirigida por Gurinder Chadha os utiliza com extrema maestria, fazendo o espectador aguardar ansiosamente por cada acontecimento da trama, mesmo já os tendo previsto antes de acontecerem. Todos possuem algo que os faz se sentir livre, algo que dê sentido à vida e faça almejar o futuro, e assim o público é convidado a adentrar na vida de Javed e compartilhar seu algo pessoal de forma vívida e harmoniosa, refletindo sobre a própria vida e o que lhe dá sentido e significado, provando-se, portanto, um filme cujo propósito é fazer o espectador sair do cinema com um sorriso no rosto. Assim, poético, encantador e deslumbrante, A Música da Minha Vida se transformando um grande conjunto de clichês em algo original e com uma identidade própria bem construída, se relacionando com o espectador de forma pessoal e, assim, possibilitando que este seja, assim como Javed, cegado pela luz.

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