LUCA | VALORIZAÇÃO DA CULTURA ITALIANA MARCA UM FILME (QUASE) SEM NENHUM DEFEITO

Se o Marvel Studios popularizou as cenas pós-créditos, a Pixar inovou com curtas animados exibidos nos cinemas antes de seus populares filmes. Em 2012, com a chegada da primeira princesa do estúdio em “Valente”, fomos agraciados nos cinemas com um peculiar e belíssimo curta animado chamado “La Luna”, dirigido por um tal de Enrico Casarosa. Mal sabíamos nós que alguns depois, o artista que começou na Pixa produzindo storyboards teria a oportunidade de produzir um longa todinho seu, e o resultado seria espetacular.

Na trama, acompanhamos as aventuras de Luca, um monstro marinho que se transforma em humano quando não está no mar, e seu amigo Alberto em uma pequena cidade italiana nos anos 60. Com uma premissa muito simples, a história flui por uma hora e meia em uma imersão na cultura italiana e nos valores da família e da amizade. Mas não se engane, temos poucos clichês e a forma com que Enrico conduz seu filme não o torna um pacote de lições de moral típicas de filmes da Disney, afinal é um filme da Pixar!

Sim, é verdade que após a compra do estúdio houve uma considerável queda de identidade nos longas do abajur revoltado com a bola mas, felizmente, “Luca” e Enrico conseguem recuperar a originalidade e colocam o longa “italiano” em pé de igualdade com grandes lançamentos do estúdio, como “Wall-E”, “UP – Altas Aventuras” e “Toy Story”.

A Itália do filme, segundo notas oficiais da produção, é do final dos anos 50 e início dos anos 60 e apesar de “Portorosso” ser uma cidade fictícia, se você visitar qualquer pequeno “comune” litorâneo da região da Ligúria, hoje, não vai encontrar quase nada de diferente, talvez apenas alguns celulares nas mãos de algumas pessoas, não todas. Mais do que qualquer outro país europeu, a Itália não modernizou a sua arquitetura, muitas casas e edifícios comuns (para não falar dos monumentos) estão em pé há mais de mil anos, e de maneira nenhuma isso é negativo. Toda essa identidade arquitetônica italiana está presente no filme, e nos ajuda a vivenciar uma pequena viagem a Ligúria. Com uma riqueza de detalhes, que precisam de muitas pausas no filme para serem apreciadas adequadamente, podemos admirar cada casa, estabelecimento, placa, ruas e praças. Aqui, os artistas não têm nenhum mérito de criação, mas merecem todos os louros por uma reprodução fiel de uma pequena cidade italiana.

A comida também recebeu uma atenção significativa no longa, seja na reprodução dos pratos, seja na forma como é abordada na trama. Enquanto o sorvete (que chamamos de gelato aqui no Brasil quando convém) aparece apenas em um momento que podemos ver inclusive no trailer, as massas são apresentadas de uma forma muito especial, para os bons observadores. Para começar, o grande destaque do longa é o trenette al pesto, uma massa local e pouco conhecida mesmo em outras regiões da Itália. Não, não é tudo macarrão. As massas são uma das bases da cozinha italiana, que segue à risca modos de preparos e origens dos ingredientes, algumas são difundidas em todo o país e no mundo, enquanto outras acabam sendo encontradas apenas em pequenas cidades. A preocupação de Enrico em não usar um clássico spaghetti mostra um cuidado e um respeito com sua própria cultura. Em uma cena em particular, podemos observar um momento em família do preparo tradicional deste prato, afinal família e cozinha é ainda muito presente na cozinha italiana e não é nenhum absurdo dizer que, na maioria dos lares, as crianças, meninos e meninas, aprendem a lidar com a massa. E por fim, um dos pontos chave do desfecho do filme é justamente relacionado aos diferentes tipos de massa, e como eles são de fato diferentes entre eles. Novamente, não é tudo macarrão.

Adicionalmente, Enrico presta uma grande homenagem aos pescadores italianos e ressalta a importância da atividade na região (caso você não tenha notado, o país é quase todo circundado de mar), e mesmo colocando criaturas marinhas como protagonistas não há, em nenhum momento, alguma referência contra o consumo de peixe. Inclusive, os personagens ajudam na atividade. Em tempos onde falta noção para a maioria das pessoas, o diretor e escritor não teme mostrar suas origens e cultura.

Seguindo na sequência de homenagens à Itália, temos a Vespa! A motocicleta símbolo do país em formato de bota acaba sendo um dos guias do longa e mais uma vez mostra a ausência de receio de Enrico em mostrar e exaltar sem escrúpulos uma marca italiana de algo que, para uma nova geração do mercado global e para os chatos da internet, vêm perdendo valor. É muito interessante, também, que o roteiro se mantém “pé no chão” em relação aos custos de uma Vespa e mostra que o que importa é o que ela representa e não necessariamente a sua versão mais nova. Novamente, mais um tapa na cara da geração hipócrita que condena canudos descartáveis mas quer trocar de celular todo ano.

A trilha sonora é um verdadeiro espetáculo (e inclusive preparamos um artigo onde você pode conferir detalhes e escutar todas as músicas do filme), e aqui nos limitamos a dizer que, no filme, é uma experiência tão surpreendente quanto a trilha sonora de “Guardiões da Galáxia” (2014) foi na época de seu lançamento, obviamente em italiano neste caso. E a questão do idioma é muito peculiar, pois na sua versão original, em inglês, temos uma quantidade enorme de expressões italianas. Este recurso não é nenhuma novidade, mas neste filme em especial é feito de um modo muito bonito. Mi raccomando! Não assista, em hipótese alguma, este filme dublado! Em conversa com o diretor Casarosa, perguntamos especificamente sobre esta questão e ele foi enfático em ressaltar o grande trabalho de sincronização de vocábulos na animação e o quão é importante para a experiência assistir ao filme em sua versão original. Para uma segunda sessão, porém, ele disse que assistir em italiano (dado que o Disney+ permite a nossa escolha) pode ser interessante.

Nascido em Gênova, Enrico não hesitou em mostrar a sua cultura na tela. O que para muitos pode ser tido como um estereótipo ofensivo, para os italianos significa identidade. A Itália é a Itália e o resto é resto. Felizmente, o povo italiano ainda é muito patriota, mesmo os mais jovens, e isso ajudará a perdurar este estilo de vida, mesmo em momentos sombrios como os atuais. E seguindo este raciocínio mais político (afinal um filme nunca é apenas um filme), há um pequeno deslize em algumas abordagens na história que permitem uma interpretação de abrandamento da imigração ilegal (que vêm acontecendo de forma organizada e criminosa há alguns anos) que pode ter algum impacto num futuro próximo.

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Esta questão acaba sendo abafada em meio a tantos pontos positivos e exaltação de valores adequados. O preconceito é explorado de uma forma muito particular, pois mostra os dois lados da questão e não coloca o “sujeito preconceituoso” como um absoluto vilão a ser condenado (e cancelado), e ao mesmo tempo apresenta o “sujeito que sofre preconceito” com uma consciência de ambiente e posição que vai além da compreensão dos “canceladores” da internet.

No todo, “Luca” é um capolavoro! E certamente será lembrado como um dos melhores filmes do estúdio e graças a uma manobra da Disney que exibirá o filme em um cinema dos EUA, o longa poderá concorrer ao Oscar de Melhor Animação de 2022 (e com certeza irá ganhar). “Luca”, segundo longa da Pixar a chegar diretamente ao Disney+, ficará disponível para todos os assinantes do serviço de streaming, sem custo adicional, no dia 18 de junho.

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