Memórias Secretas

Já pensaram se o neoclássico do cinema ‘Amnésia’ (2000), considerado o filme que colocou sob os holofotes o cultuado diretor Christopher Nolan tivesse um protagonista representante da terceira idade? Pois em ‘Memórias Secretas’, o diretor egípcio Atom Egoyan meio que coloca em prática esta ideia, através do personagem Zev Guttman (o sempre ótimo Christopher Plummer). No filme, um senhor que vive em um asilo (Plummer) e acaba de perder sua esposa, sai em uma missão atrás do responsável pela morte da sua família enquanto estiveram presos em Auschwitz durante o Holocausto. Entretanto Zev sofre de demência pela sua idade avançada e precisa lembrar de suas motivações por meio de uma carta enviada pelo seu amigo de asilo Max (o também ótimo Martin Landau), outro sobrevivente da época (além de tatuagens e anotações no corpo, entendedores entenderão a referência…).

‘Memórias Secretas’ aborda de forma interessante e pouco usual a rotina de uma pessoa com Alzheimer – embora a construção da narrativa tenha seus excessos dramáticos por se tratar de um filme, o roteiro foi compartilhado com especialistas na doença para que o comportamento do personagem chegasse o mais próximo possível da realidade. Também estabelece uma relação entre luto e vingança que dificilmente aconteceria na vida “real”, mas que graças a sensibilidade do diretor aliada a excelente performance do seu elenco, funciona e convence bastante dentro do universo diegético arquitetado pelo filme. Em outras palavras, o espectador “compra” a briga do protagonista, seja para saber até onde o inusitado herói vai chegar ou por compartilhar do mesmo desejo de vingança pelos oprimidos.

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E é justamente a síntese e clareza deste universo e dos seus personagens que mais surpreende no roteiro do estreante Benjamin August. O filme tem um objetivo definido (a sacada da lista de tarefas é muito boa) e todas as suas cenas se encaixam na chamada “Lei da necessidade”, ou seja, os caminhos que o filme escolhe sempre levam à resolução da história, o que gera também um ritmo progressivo que não cansa o espectador ou torna a trama desinteressante. O filme é a prova de que quando o realizador tem o domínio da história que querem contar, não é preciso flashbacks ou explicações desnecessárias que acabam por “inchar” o roteiro. Na verdade, nas poucas respostas que o filme entrega é que reside o sucesso do seu mistério.

Continuando os pontos positivos de ‘Memórias Secretas’, o sucesso da história não seria possível sem a contribuição maravilhosa do seu elenco. O “casting” foi preciso, sendo os vencedores do Oscar Martin Landau e o canadense Christopher Plummer, ambos com mais de 85 anos, os destaques. Enquanto o primeiro se encontra em uma situação fisicamente muito frágil, o outro tem uma energia curiosamente fora do comum para alguém da sua idade, mas psicologicamente se encontra bem debilitado. Entre os coadjuvantes, se destacam o experiente Bruno Ganz, além de Dean Norris (de Breaking Bad) e Henry Czerny, embora tenham participações bem mais curtas.

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Esteticamente o filme utiliza os ambientes muito bem a seu favor. É quase uma espécie de “road movie” que se passa em locais com detalhes característicos que servem para reforçar no espectador que o protagonista está indo longe na sua busca. Temos uma cena dentro de um trem, outra num hotel, numa loja de armas, ou em uma casa afastada de tudo com uma represa assustadora ao fundo. Tudo isso serve – sem querer ser repetitivo – para estabelecer o universo do filme de forma plausível. O protagonista tem uma habilidade interessante, que contribui bastante para dar um tom mais refinado ao personagem e ajudar na empatia do espectador que é tocar piano. Este fato contribui muito para a trilha sonora do filme, que é muito boa e ainda remete vagamente a outro pianista que sofreu durante o Holocausto, retratado no filme de Roman Polanski.

As cenas em que Plummer toca piano, inclusive, têm o próprio instrumento particular do ator. O oscarizado compositor Michael Danna surpreende aqui com arranjos diferentes dos quais costuma trabalhar, utilizando bastante o piano e o violino para reforçar o gosto do protagonista Zev pela música clássica, além de servir nos momentos de maior tensão para deixar o espectador mais aflito, de semelhante modo ao que o gênio Bernard Herrmann sabia fazer com maestria. Egoyan, por sua vez, também aproveita o elemento do piano na sua direção, usando-o de uma forma como Tarantino faria: a calmaria de uma bela música precedendo o choque de um momento mais brutal no filme.

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‘Memórias Secretas’ é uma grata surpresa do cinema canadense. Não é uma história memorável, com reviravoltas absurdas ou algo do tipo, mas é um suspense de muita qualidade pela sua simplicidade e abordagem realista das suas condições, ou seja, não se propõe a ser pretensioso. Christopher Plummer está em excelente forma, embora talvez não seja o papel ideal para uma indicação ao Oscar, mas vale a menção pelo seu grande trabalho. Pode não ser um filme que irá agradar a todos, pelo seu estilo muito pragmático, embora não seja raso em nenhum dos temas que aborde.

Muito me leva a crer que fãs de ‘Amnésia’ do Nolan ou até de uma idealização de um Tarantino mais contido (idealização por que de contido ele não tem nada…) devam gostar bastante do filme. O diretor Egoyan consegue habilmente criar um realismo emocional que gera empatia no espectador e para um filme dar certo, conseguir isso já é meio caminho andado. Estilo próprio, bom gosto musical, grandes performances e um protagonista bem inusitado são alguns dos motivos pelos quais o filme precisa ser visto.




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