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Eu tinha doze anos quando vi uma cena de estupro em um filme pela primeira vez. Naquela época, em decorrência das insônias que eu sofria desde a infância e que perduraram por muito tempo, era comum acordar de madrugada e não conseguir mais pregar os olhos. Dessa forma, eu recorria aos filmes exibidos na televisão e ficava ali, tendo a tela como companhia até conseguir pregar os olhos com a aurora por, no máximo, duas horas.

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Quando despertei naquela noite, a cena que eu vi, infelizmente, não me deixou nem ter essas duas horas de sossego por dias. À minha frente, havia uma mulher de cabelos claros que era beijada à força por um indivíduo. Ele despia a parte de cima de suas roupas. Ela protestava e tentava afastá-lo, até conseguir interrompê-lo com um chute em suas partes íntimas. Isso, no entanto, não impediu que ela fosse violentada inúmeras vezes pelos colegas daquele homem. “Não”, ela gritava, chorando, inerte, implorando. Até que, depois de tanta violência, um impulso tomou conta dela a tempo de fazê-la sair correndo, com as roupas, a mente e o coração em frangalhos, aos gritos.

A realidade daquela dor me afetou de uma forma tão profunda que eu simplesmente não consegui falar com mais ninguém a respeito do que eu tinha visto, de como aquilo tinha me impactado de uma forma negativa. A coisa que mais se passava na minha cabeça naquela época era: “Por quê ninguém ajudou?”. Afinal de contas, era um bar público. Tudo o que se avistava era, ao contrário, homens que riam, apontavam para o corpo daquela mulher e incentivavam os outros a fazer o mesmo, como se ela fosse um pedaço de carne qualquer, e não uma mulher com sentimentos, um ser humano destruído por dentro e por fora diante de tanta crueldade. Quando uma garçonete entrou no ambiente e presenciou aquela cena, em choque, foi ameaçada de sofrer o mesmo tipo de violência caso ousasse dizer qualquer coisa. O silêncio é o que o abusador deseja de suas vítimas. É o que uma sociedade doente pensa que é o ideal: empurrar para debaixo do tapete, culpabilizar a vítima e arrumar desculpas para justificar esse tipo de comportamento monstruoso.

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Eu demorei pra conseguir descobrir qual era o filme exibido na ocasião. Só anos depois consegui pesquisar e constatar que era ‘Acusados’ (1988), estrelado por Jodie Foster, que viria a se tornar uma de minhas atrizes favoritas com seus papeis densos, interpretados com uma intensidade impressionante. A realidade daquela atrocidade sempre bate quando leio algo a respeito de um dos piores tipos de crimes que podem ser cometidos contra uma pessoa, sobretudo uma mulher: o estupro. Há poucos dias, essa reflexão voltou a me atormentar quando o caso horrível de uma menina de dezessete anos estuprada por mais de trinta homens veio à tona. Algo que me corroeu a alma e me relembrou de como ser mulher pode ser uma coisa extremamente dolorosa.

Foi impossível não associar o quanto do caso dessa jovem tem a ver com o de Sarah Tobias, interpretada por Foster. O papel que rendeu o Oscar à atriz foi inspirado em um caso real, de um estupro coletivo ocorrido em março de 1983 em um bar chamado Big Dan, localizado em New Bedford, no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos. Em comum, Sarah e a jovem brasileira têm o fato de pertencerem à classe baixa e possuírem uma má reputação. Sarah estava bêbada e dançava provocante no bar antes de ter sido estuprada. A jovem brasileira frequentava a comunidade, foi mãe adolescente e era usuária de drogas. Tudo isso é usado como justificativa pelos abutres, que acham que qualquer tipo de comportamento que destoe do que é considerado como o de uma “moça de família” justifica uma violência. Não, não justifica e nem nunca justificou. Vamos gritar isso quantas vezes forem necessárias para combater e erradicar esse crime. Uma vítima é sempre uma vítima. Ponto final.

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O caso de Sarah no filme, dirigido por Jonathan Kaiplan e roteirizado por Tom Topor, foi parar nos tribunais. Sem testemunhas, a mulher teve sua denúncia posta em dúvida pela justiça, colocando a promotora Kathryn Murphy, interpretada por Kelly McGillis, diante de um desafio múltiplo: defender a vítima, colocá-la no lugar de vítima e ir contra o que toda uma sociedade pensava, botando os acusados no devido lugar ao qual pertenciam: atrás das grades. Seu comportamento foi apontado como uma possível justificativa para o crime. Afinal de contas, ela teria provocado a violência com suas atitudes tidas como “inadequadas” – a mesma ladainha de sempre. Até quando vamos ter que ouvir isso? É assustador que, vinte e oito anos depois da divulgação do filme, esse tipo de discurso ainda persista em um caso como o da menina da comunidade no Rio de Janeiro. Pior ainda: os criminosos filmaram, fotografaram, fizeram o diabo com o corpo da menina e depois ainda divulgaram como forma de troféu. Mais impressionante ainda é a quantidade de pessoas que assistiram e espalharam esse material grotesco, dando voz aos criminosos. Quem cala consente com a agressão. Quem dá voz ao agressor estimula a violência. Posicionar-se é essencial!

Por quê cito ‘Acusados’ como um filme ideal para refletir sobre essa violência? Bem, explico: é um dos poucos filmes da Sétima Arte que realmente propõem uma reflexão e uma denúncia contra esse tipo de crime. No geral, grande parte das mulheres estupradas dentro das telas passam batido. Já divulgamos aqui no Pipoca de Pimenta uma pesquisa que aponta que o corpo feminino é três vezes mais explorado do que o masculino nos filmes. Nudez feminina tem aos montes. É comum. Muitas vezes, a cena de um estupro passa como um mero episódio dentro de um contexto de muita violência. Foi o que eu pensei quando vi uma cena de ‘Selvagens’ na qual a personagem de Blake Lively é obrigada a ver o estupro da própria mãe em um vídeo. Fiquei impactada. Pensei: como pode parecer uma coisa tão banal quando, na verdade, é algo tão chocante e sério? Por mais que eu ame cinema, não consigo deixar de pensar que ainda falta muito para dar voz às mulheres nesse ponto e realmente mostrar o lado humano e realista do que acontece dentro da nossa sociedade. O estupro é, ainda, algo silencioso, discreto e, infelizmente, banal. Afinal de contas: quantas cenas de violência vemos nos filmes e o quanto os sentimentos da vítima são postos em destaque? É triste constatar que ainda falta muito pra chegarmos lá.

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Em 2009, a Argentina ficou em voga com o lançamento do filme ‘O Segredo dos Seus Olhos’, com Ricardo Darín, mostrando a investigação em torno do estupro seguido de assassinato da personagem Liliana Colotto. A reflexão do longa metragem, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, gira em torno da impunidade. Impunidade, esta, que passou longe de ‘Acusados’, mas que sabemos, com uma tristeza enorme no coração, que ainda é muito comum no mundo em que vivemos. Esse tipo de coisa nos faz lembrar de filmes como ‘Doce Vingança’, o remake de ‘I Spit On Your Grave’, de 1978, um sucesso de público que resultou em continuações não tão bem-sucedidas, mas que impactam o espectador por um motivo que também percorre o desenvolvimento de ‘O Segredo De Seus Olhos’: a vingança com as próprias mãos. No longa de terror dirigido por Steven R. Monroe e estrelado por Sarah Butler, a personagem é uma escritora que se isola no interior para conseguir concluir um livro. Seu comportamento mais recluso e pouco aberto às investidas dos personagens machistas de uma cidade pequena a tornam alvo de um estupro coletivo de cenas impressionantes e fortes. A vingança planejada pela personagem, que consegue fugir de um assassinato para silenciá-la, resulta em uma série de torturas físicas dolorosas e que provocam até comemoração no espectador. Quando me falaram desse filme, de como ele era excelente, refleti e cheguei a uma conclusão, juntamente com minha irmã e minha mãe que viram as cenas de queimaduras com ácido, tiro no ânus e castração: nada se compara com a violência que ela sofreu. Nela, tudo está enraizado no âmago, nos desdobramentos físicos e intensamente psicológicos que se tornam um assombro.

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O que quero dizer, mais uma vez, é que sobra violência e falta a humanidade e a realidade que realmente acometem a vítima na vida real. As cenas impactantes de ‘Irreversível’, filme francês dirigido pelo polêmico Gaspar Noé, deram o que falar já na sua exibição em Cannes na época de seu lançamento, em 2002, quando espectadores passaram mal dentro das salas com as cenas absolutamente violentas do longa metragem. Intenso, controverso e altamente perturbador, o filme mostra a cena da personagem de Monica Belucci sendo estuprada de uma forma tão violenta e horripilante que, até hoje, é citada como um dos piores estupros já vistos no cinema. Consequência: não, eu nunca consegui ver esse filme. Como mulher e como ser humano, tenho meus limites. Minha sensibilidade grita dentro de mim a ponto de me prevenir de algo que pode me impactar pro resto da vida, como a cena de ‘Acusados’ conseguiu fazer. Como mulher, me recusei, pelo bem da minha saúde. Mas sei que esse filme, com toda a sua polêmica, tem um retrato cru e chocante da violência que ganha destaque. O diretor realmente quer fazer o espectador vomitar. Quer mostrar que há um absurdo por trás do que muitos filmes querem passar, chegando ao ponto de romantizar a violência e mostrar que há um prazer oculto (OI?) da mulher com o estupro, como mostra ‘Bonitinha, Mas Ordinária’, filme nacional com Lucélia Santos baseado na obra de Nelson Rodrigues. “Na verdade, ela pediu pra ser currada”. Gaspar Noé mostra que não: não há vítima que peça por violência. Parem com isso.

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O cinema tem o poder de conscientizar as pessoas quanto aos problemas cruéis de uma sociedade. Por quê, então, não usar esse poder? Por quê não ouvir suas vítimas? Outro exemplo desse tipo de conscientização vem de um filme polêmico, que também levantou debates e chocou os espectadores. ‘Preciosa’ (2009), de Lee Daniels, também levou estatuetas do Oscar pra casa ao retratar o drama de uma jovem negra da periferia, pobre, analfabeta e que foi estuprada pelo próprio pai – fato que acabou, terrivelmente, resultando em uma gravidez.

(OBS: Esse filme já foi citado aqui no site como um dos longas metragens que escancaram a violência sexual contra crianças e adolescentes. Leia aqui).

O roteiro de Geoffrey S. Fletcher levanta o debate sobre o que acontece debaixo dos panos da sociedade, desmistificando o estupro que ocorre nas ruas, quando um criminoso aborda a vítima no escuro. Em 2015, a jornalista Karin Hueck escancarou com maestria essa realidade na matéria ‘Como Silenciamos O Estupro’, publicada pela Revista Superinteressante e que pode ser lida na íntegra aqui. O resultado do levantamento: a maior parte dos crimes de estupro são cometidos por conhecidos da vítima, dentre eles parentes, amigos e até namorados. ‘Preciosa’ mostra essa realidade, também demonstrando a crueldade da impunidade e de pessoas que sabem dos crimes e acabam por acobertá-los para defender o agressor, como faz a mãe da jovem no filme. Como fazem milhares de pessoas que se recusam a ouvir a vítima, a denunciar, a prestar assistência física e psicológica e até a interromper a gravidez indesejada.

Performance by an actress in a leading role, Gabourey Sidibe in "Precious: Based on the Novel 'Push' by Sapphire" (Lionsgate) This image is made available here as part of the Academy of Motion Picture Arts and Sciences' 82nd Annual Academy Awards¨ Nominations Announcement Press Kit. This image may only be used by legitimate members of the press.

A jovem carioca estuprada por mais de trinta homens foi violentada mais ainda, assim como todas as vítimas do crime são quando não são ouvidas ou são apontadas como as grandes responsáveis pela atrocidade. Assim como no ano passado, a gente volta a colocar em pauta o assunto “Chega de Silêncio”. Precisamos fazer um escândalo e lutar. “Não dói o útero e sim a alma”, disse a menina. E como dói! A vítima entrou para as tristes estatísticas da barbaridade cometida por conhecidos: um dos agressores era o homem com o qual ela mantinha um relacionamento.

O crime do estupro é o que as mulheres mais temem. Minha mãe, ao discutir o caso em pauta, me disse que sentia muito medo de que eu fosse vítima quando saía pra qualquer bar ou balada na minha adolescência. Que alguém colocasse algo na minha bebida, fosse ela álcool ou água, e usasse isso pra me ferir. Quem nunca ouviu dos pais e criadores: “Não beba nada do copo de ninguém”? Que mãe ou filha nunca temeu por isso? Isso está tão enraizado na nossa sociedade que machuca além do que possamos imaginar.

Que o cinema faça sua parte. E nós também.

* À jovem vítima, e a todas as outras que sofreram na pela, na alma, no corpo e no coração com esse tipo de violência, nossos mais sinceros sentimentos e apoio. Basta! Diga não à cultura do estupro! 





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